A Casa dos Meus Pais

As lembranças de uma casa, um bairro e uma cidade que não existem mais.

Alexandre Aimbiré
8 min readOct 18, 2020
A Avenida Madre Benvenuta hoje. Foto surrupiada do Twitter do Prefeito Jean Loureiro.

“Era a casa da sua infância?”

“Não, mas foi a casa onde eu cresci.”

Por muitos anos, minha mãe dizia que éramos como ciganos, mudando de cidade constantemente e sem aviso. Até completar quinze anos, morei em nove casas diferentes, estudei em sete escolas diferentes em cinco cidades diferentes, localizadas em três países e dois continentes separados por um oceano. Cresci mudando de amigos a cada dois anos, reconstruindo minha vida completamente. Às vezes isso era bom, às vezes era ruim. Lembro especialmente como foi difícil mudar de Porto Alegre de volta para Florianópolis, minha cidade natal, no início de 1995. Depois de uma longa adaptação, eu finalmente fiz amigos, estava feliz e estava gostando de uma menina. Gosto de pensar que ela também gostava de mim. Mas, mais uma mudança inevitavelmente veio e nunca mais vi nem os amigos, nem a menina.

Em Florianópolis, moramos por dois anos numa casa no Saco Grande I (hoje conhecido como João Paulo) até abril de 1999, quando nos mudamos pela última vez para o Santa Mônica. Minha vida mudou radicalmente quando fomos para lá.

A primeira coisa que mudou, para mim, com o novo endereço foi a mobilidade. Apesar da distância ser praticamente a mesma até o centro da cidade, eu estava numa região melhor abastecida de ônibus e praticamente todos os meus compromissos eram resolvidos com a linha Expresso Universitário, enquanto no Saco Grande, apenas uma linha de ônibus me servia. No Santa Mônica, além das opções, eu tinha fácil acesso à escola onde eu estudava e à UFSC, onde eu estudaria e passaria boa parte do tempo nos anos seguintes. Meus irmãos, que estudavam no Colégio Militar a poucas quadras dali, iam a pé pra escola. Eventualmente, eles também estudariam na mesma universidade.

Outra novidade era que, naquela casa eu teria, pela primeira vez desde que consigo me entender por gente, o meu próprio quarto. Depois de dezesseis anos sendo um bebê ou dividindo quarto com meu irmão — e às vezes com minha irmã também — eu teria meu próprio espaço, meus próprios móveis e uma estante onde poderia guardar os meus livros. Este fato, combinado com a minha nova mobilidade, deram a mim uma autonomia e uma independência como nunca havia experimentado na vida.

A casa ficava na rua Jonas Alves Messina, próxima à Beira Mar e a uma enorme concessionária de automóveis. Da passarela que usava pra atravessar a avenida, eu podia ver a minha casa e o enorme pátio da concessionária. Anos depois fui descobrir que a rua leva o nome de um menino que morava na casa que ficava na esquina. Num momento de distração dos pais, ele saiu pelo portão e foi atropelado em frente à casa. Depois disso, a prefeitura instalou lombadas ao longo de toda a avenida que corta o bairro, a Madre Benvenuta, como medida preventiva. Ele tinha apenas cinco anos. Alguns membros da família ainda moravam na casa quando nos mudamos para lá. Hoje, talvez por ironia do destino, o local é ocupado por uma enorme loja de artigos infantis.

O bairro, apesar de ser de classe média, não tinha a melhor das reputações alagava sempre que chovia mais forte — afinal, ele ficava em cima de um mangue. Em 1995, às vésperas do Natal, a cidade foi castigada por um forte temporal e a rua inteira alagou. A casa onde iríamos morar ficava a 1,5m de altura do nível da rua e teve apenas o assoalho do primeiro piso coberto de água. Ela era a única casa mais alta, todas as outras ficavam na altura da calçada. Muitas casas da nossa rua estavam vazias, abandonadas pelos proprietários que resolveram se mudar após perder tudo nessa enchente. Nunca mais houve uma como aquela, mas passamos por alguns temporais e algumas ressacas lá. Uma vizinha, a Dona Lola, uma manézinha minúscula e com a voz ardida, já tinha um “esquema” para erguer todas as coisas da casa em caso de uma nova enchente. Ainda tenho a voz da Dona Lola estampada na minha mente chamando o nome da bucica Emily.

Mas, apesar dessa reputação, o Santa Mônica era um dos melhores e mais tranquilos bairros pra se viver. Ficava tangente às duas principais universidades da cidade e era basicamente um bairro residencial. Não tinha nenhum comércio grande além do Supermercado Santa Mônica, um posto de gasolina e o Red Café, uma balada que alternava entre festas da espuma aos finais de semana e shows de rock na Quarta Rock Feira. Não eram os únicos comércios do bairro, mas eram os únicos notáveis e todos ficavam na mesma esquina, a 200m da minha casa. O resto era discreto e pequeno, como a boleira que ficava na minha rua e fazia um dos melhores pudins de leite que já comi na vida. Não tinha nada de destaque ao longo da avenida além de um posto da Polícia Militar e do campo de areia da associação de moradores do bairro.

Tudo isso mudou no dia que a concessionária fechou e a construção do shopping começou.

O shopping demorou muito mais tempo que o previsto para ser construído, mas antes mesmo da inauguração, ele já estava impactando a região. As casas baixas foram dando lugar a casas de dois pisos, cheias de vidros blindex e arquitetura bisonha que remetia às mansões em Jurerê. Na avenida, tudo foi virando loja, restaurante, centro comercial, ou concessionária. Comecei a não reconhecer mais o lugar onde eu vivia. O Red Café fechou, e nunca mais reabriu. Dizem que alguns sem-teto se abrigam ali. Ao lado apareceu um restaurante de comida japonesa que serve sushi em esteiras. O supermercado Santa Mônica faliu e foi comprado por uma outra cadeia maior. O posto de gasolina se tornou um lugar tão hostil de madrugada que eu não me atrevia a ir ali nem pra comprar cigarros.

Um rapaz morreu durante a construção do shopping, atropelado por um caminhão que saía da obra enquanto ele passava de bicicleta. Ele estudava na mesma universidade que eu e fazia o mesmo trajeto que eu todos os dias para aula. Sua morte não foi noticiada em nenhum lugar e também não batizaram nenhuma rua em sua homenagem.

A minha rua, antes pacata, ficou cheia de carros. Começou a ficar difícil estacionar na frente de casa. No início, eram os carros e motos das pessoas envolvidas na construção do shopping, depois, eram os carros dos funcionários das lojas. Não foram poucas as vezes que tive problemas para entrar com o carro na garagem de casa porque algum engraçadinho achou uma boa ideia deixar o carro “rapidinho” na garagem ou mesmo que estacionar “só um pedacinho do carro” na frente não seria um problema. Também não era incomum ver carros arrombados ou com os vidros estourados e pertences furtados. Os nossos vizinhos, que em sua maioria eram idosos que moravam lá há muitos anos, abandonaram o bairro e foram viver em lugares mais tranquilos. Uma casa de esquina fechou e foi convertida em uma loja de cadeiras e depois em um bar. A casa onde morava um famoso apresentador de um programa policialesco na televisão tornou-se um coworking. Pergunto-me se as pessoas que trabalham lá sabem que ele quase matou a esposa por acidente quando disparou uma arma contra ela achando que era um invasor.

Minha casa mudou. Com o aumento de relatos de invasões domésticas e roubos, meus pais instalaram cercas elétricas ao longo dos muros, complementando o alarme que já havia há muitos anos na casa. Não se via mais o Morro da Cruz da janela do quarto da minha mãe, o shopping tomou ela para si. Minha irmã se mudou, deixou a província e foi tentar a vida em São Paulo. Eu também me mudei, tive uma filha, e voltei, mas isso é uma outra história. Por muito tempo, a minha vida, a dos meus irmãos e a da minha mãe girou em torno da UFSC. Era interessante que morássemos próximos a universidade e depois que saímos dela, não fazia mais sentido estarmos numa região que se tornava cada vez mais hostil.

Então, depois de dezoito anos no mesmo endereço — uma coisa inédita na Família Aimbiré — meus pais saíram do Santa Mônica. Minha irmã que já não morava conosco há muitos anos, agora nem morava mais no Brasil. Eu me mudei para São Paulo, onde moro até hoje, e meu irmão também saiu do país. Poucas semanas depois que meu irmão e eu saímos de casa, meus pais trocaram o Santa Mônica pela tranquilidade do Cacupé. Apesar de mais distantes do centro e do aeroporto, sem acesso tão fácil a um supermercado, a vida ficou mais tranquila pra eles. A casa nova não é a minha casa, nunca foi. Sequer tenho quarto lá.

Talvez a última foto da família toda na nossa antiga casa.

Nunca passei pela minha antiga casa desde que me mudei pra São Paulo. Para minha tristeza, soube por um amigo que a casa onde eu cresci se tornou a sede de uma startup, daquelas com piscina e mesa de ping-pong. A mesma piscina onde eu brincava com a minha filha agora é um chamariz para programadores que nunca irão usá-la. Meu antigo bairro está irreconhecível. Até o canteiro central da avenida mudou. Antes um gramado verde com árvores que cortava o bairro que já foi chamado de Jardim Santa Mônica, agora é uma ciclofaixa cor de tijolo.

Cada vez que eu vou para Florianópolis percebo algo diferente na cidade. É como reassistir a um filme depois de um tempo e notar uma cena que você não tinha reparado da primeira vez. Cada vez que eu volto, sinto como se eu tivesse perdido mais um pedaço do que me ligava à cidade. Sinto-me um estranho na cidade onde eu nasci e morei por mais tempo, e aos poucos o que havia de familiar pra mim começa a se tornar estranho. Até a Ponte Hercílio Luz, a coisa mais perene da cidade, foi reinaugurada depois de décadas fechada e se tornou uma estranha para mim. Vi os incontáveis vídeos e fotos de amigos na inauguração e nas semanas seguintes com o mesmo olhar de quem vê stories da viagem de outra pessoa.

A minha cidade não é mais minha e eu não sou mais dela. A minha Florianópolis, o meu Santa Mônica, foram-se junto com a casa onde eu cresci e passei minha juventude. A cidade mudou, e eu também mudei. Aquele Alexandre também não existe mais.

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Alexandre Aimbiré
Alexandre Aimbiré

Written by Alexandre Aimbiré

Literature Student. Weekend Sociologist. Father. Husband. I write in English and Portuguese about whatever I feel like, but mostly about Music and Literature.

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