Airbag

Na estrada, cada curva, cada marca de borracha no asfalto é um memento mori, um lembrete da nossa própria mortalidade.

Alexandre Aimbiré
5 min readOct 12, 2020
Foto de Dominika Kwiatkowska no Pexels

“In a fast German car
I'm amazed that I survived
An airbag saved my life”

Viajar de carro pelas estradas no Brasil é uma experiência desoladora. Todo o caminho até o destino é um lembrete da nossa própria mortalidade. Muitas vezes sinto que estou num campo de batalha, olhando o que sobrou da paisagem depois que as tropas se foram. Pedaços de pneus de caminhão estourados ficam atirados pelo chão como membros decepados. Em cada curva há marcas de pneus, como as trilhas deixadas por balas de canhão. As muretas de concreto marcadas por cicatrizes que soam como um aviso de que a jaula de aço que nos cerca não é invulnerável e que nossas habilidades como pilotos são limitadas. Em cada canto parecem haver cacos de vidro, espalhados como um borrifo de sangue.

Nossa vida é tão frágil quanto o vidro que separa o interior do carro do caos e da selvageria que há do lado de fora.

Além dos lembretes físicos, os inúmeros memento mori, estamos sob constante assalto. O espaço é disputado com outros motoristas, e estes muitas vezes são o próprio inimigo. Imprudentes e incompetentes, muitos motoristas resolvem jogar com sua própria vida e a dos outros. Eu meneio a cabeça e xingo a cada ultrapassagem forçada pela direita, a cada moto andando no vácuo de um caminhão e a cada fechada desnecessária. Não há muito o que fazer além ficar irritado e continuar prestando atenção. Mas a 120km/h, a imprudência costuma cobrar caro e não é incomum passar por carros que se perderam sozinhos e pararam fora da pista, especialmente em dias de chuva.

Tudo piora ao passar por um posto da Polícia Rodoviária. Obrigados a reduzir a velocidade, vemos que estamos sozinhos. A película escura esconde que não há ninguém do lado de dentro zelando por nós. Do outro lado, os restos despedaçados do que um dia foram carros. Empilhados como cadáveres, são o que restaram de incontáveis histórias desafortunadas que acabaram ali, no asfalto. Faltam para-choques, vidros, portas. Ás vezes faltam a frente, ou a parte de cima inteira. Ás vezes o que está parado ali no pátio é uma pilha de metal tão retorcido que é difícil saber que aquilo um dia foi um carro. As carcaças negras e queimadas talvez sejam as mais assustadoras.

Entre todos os perigos que espreitam a cada curva, nossos maiores inimigos são os caminhões. Lembro que quando eu era criança os caminhoneiros eram nossos maiores aliados. Cresci viajando pelas BR-101 e BR-116 entre Porto Alegre e Campinas. As estradas eram de pista simples e os caminhoneiros ajudavam com as ultrapassagens e nós prontamente os agradecíamos com duas buzinadas curtas. Os anos passaram e aos poucos a estrada foi sendo duplicada. A medida que a quantidade de pistas foi aumentando, comecei a perceber os caminhoneiros como inimigos a serem temidos. Um caminhão ultrapassando outro é um evento perigoso que muitas vezes acontece sem o menor aviso, ou seta. Quando comecei a viajar sozinho, sem minha família, preferia pegar a estrada à noite, principalmente porque há menos caminhões circulando. Eu me programava pra sair entre as 17h e as 19h, o horário em que muitos param pra jantar, e aproveitar a paz e tranquilidade da penumbra.

Isso tudo mudou às vésperas de um Ano Novo na Rodovia dos Bandeirantes.

Meu Renault Clio preto, que eu carinhosamente chamava de Azeitona, já tinha passado de seus anos dourados. Depois de vários anos e muitos quilômetros rodados, sua potência estava bem abaixo dos 1.0 originais. Apesar disso, ainda era um carro confiável e eu sempre mantive a manutenção dele em dia. Faltavam poucos dias para o Ano Novo e saímos no fim da tarde com destino à Serra Negra para fugir um pouco da cidade. Estava tocando “Mr. Brightside” do The Killers no rádio e eu rodava a pouco mais de 90km/h, sem forçar muito o já cansado motor do carro. Tudo parecia correr bem, até que a Mariana, que era minha noiva na época, olhou em minha direção apontou para o caminhão que estava ao nosso lado. Virei a cabeça para o lado e vi uma enorme roda, mais alta que a minha cabeça.

“Ele não está perto demais?”

Mal havíamos saído de São Paulo, estávamos rodando a menos de meia hora. Eu nunca imaginava que algo poderia dar errado. Um instante atrás eu sorria, cantava e apreciava os tons arroxeados do por do sol. Um intante depois, antes que eu pudesse reagir, pisar no freio, no acelerador ou buzinar. Antes mesmo que eu pudesse responder, eu senti a batida.

A roda do caminhão encostou na minha porta.

A pancada foi forte e o carro pareceu quicar no ar. Segurei firme no volante, mas não adiantou e eu perdi o controle do carro. Ouvi um grito e senti o carro virar de lado e girar. Eu enxergava nada, a fumaça que subia dos pneus ofuscava tudo em volta do carro. Sentia a luz dos faróis dos outros carros no meu rosto. O barulho dos pneus guinchando na pista se misturava com os gritos. Tudo não deve ter durado mais que alguns poucos segundos, mas dentro do automóvel pareceu uma eternidade. Ficamos suspensos no ar e no tempo, como uma bailarina. O carro girou três vezes em torno de si mesmo e atravessou a pista toda até bater de lado na mureta do canteiro central.

Parecia que o carro nunca ia parar, mas ele parou. Quase que como um reflexo, tateei a mim mesmo para ver se eu estava vivo. Eu estava, Mariana também. Nada aconteceu conosco, nem um arranhão. Há que ouça esta história e diga que foi um anjo da guarda, ou mesmo a própria mão de Deus que nos privou de qualquer mal. Eu não consigo encontrar nenhuma resposta lógica para como sobrevivemos, então aceito a possibilidade de intervenção divina. Tantas coisas diferentes podiam ter acontecido, mas não aconteceram. Estávamos vivos.

Naquela noite, eu fui o memento mori da estrada. Passei pelo mesmo trecho não muito tempo depois e ainda era possível ver as marcas dos pneus deixadas pela dança frenética do meu carro pela pista. Três longas voltas impressas como caligrafia de criança. A mureta marcada pela tinta preta do carro. Os cacos de vidro espalhados como sangue borrifado no asfalto. Por algum tempo depois do acidente, eu ainda sentia tudo girar ao meu redor e via os faróis apontando na minha direção quando fechava os olhos. Era meu próprio memento mori.

Viajar de carro pelas estradas no Brasil é uma experiência desoladora. Mais pessoas morrem todos os anos nas estradas no país que em algumas batalhas mais sangrentas travadas ao longo da história. Todos os dias, histórias acabam no asfalto, num resto cronemberguiano do que um dia foi um automóvel, abandonado no pátio da Polícia Rodoviária. Em cada canto há uma lembrança, uma frase escrita no guard-rail, ou espalhada pelo chão. Lembretes deixados pelos outros nos alertado que a vida é curta e frágil demais.

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Alexandre Aimbiré

Sociólogo de boteco, estudante de Letras, guitarrista ocasional, pai, marido e leitor ávido de caixas de sucrilhos. Leio e escrevo sobre o que me dá na telha.