Ao mestre, com carinho, pegue fogo e morra.
A dislexia e minhas memórias de um professor que era querido por todos, mas que na verdade era um sujeito horroroso.
Uma coisa muito importante pra se saber sobre mim é que eu sou disléxico. Outra coisa muito importante sobre mim é que eu só fui descobrir isso com 27 anos. Apesar de existirem muitas pessoas famosas com dislexia, como Albert Einstein, John Lennon e Pablo Picasso, até pouco tempo atrás pouco se falava sobre isso. Até hoje muitas escolas e profissionais de saúde e educação têm pouquíssimas informações a respeito e muitas vezes nem sabem o quê é direito. De acordo com a Wikipédia (ahem), a dislexia é “uma perturbação da aprendizagem caracterizada pela dificuldade de leitura, apesar da inteligência da pessoa ser normal”.
Não quero entrar em detalhes técnicos ou clínicos sobre a dislexia, há muito material online sobre isso. No Brasil, temos a Associação Brasileira de Dislexia e o Instituto iABCD, que buscam dar suporte à escolas e mudar a percepção da sociedade sobre este distúrbio de aprendizagem. Há também fundações como a Made By Dislexia, capitaneada pelo meu bilionário excêntrico favorito, Richard Branson, que tem como objetivo fazer com que pessoas com dislexia se entendam como disléxicos e como isto nos torna diferentes. Não melhores ou piores, apenas diferentes. É reconfortante saber que além do próprio Branson, diversas pessoas famosas e ditas bem sucedidas são como você.
Eu provavelmente nunca vou cozinhar tão bem quanto o Jamie Oliver ou pilotar um carro como o Lewis Hamilton, mas isso é reconfortante de toda forma.
No meu caso, especificamente, eu às vezes troco a ordem de palavras ou letras, leio a mesma linha repetidas vezes sem perceber, leio frases inteiras e às vezes não lembro o que li no começo da frase. Ler em voz alta é um pesadelo. Eu tenho traumas de quando me pediam pra ler em voz alta algum versículo da Bíblia na Escola Dominical até hoje. Tudo que eu descrevi agora acontece ao mesmo tempo quando leio em voz alta e ainda tenho que lidar com a gagueira. Sério, se eu não pensar muito bem no que eu estou fazendo, eu pareço uma criança em fase de alfabetização tentando ler um mísero tuíte.
“Ah, Alexandre, isso acontece comigo também às vezes. Talvez eu também tenha dislexia…”
Escuta aqui. Eu passei literais trinta anos da minha vida achando que o Patacôncio, vilão dos quadrinhos do Tio Patinhas, se chamava “Patacônico”. Então não venha me dizer que você acha que tem dislexia porque se identificou com um ou dois sintomas que eu descrevi agora pouco.
Dislexia não é não saber às vezes se uma determinada palavra se escreve com s ou ç. Se você realmente acha que pode ter dislexia ou realmente se identificou com o que eu estou falando, faça um teste, ou procure um psicólogo educacional. Vai mudar a sua vida, eu prometo. Eu passei uma vida ouvindo que eu deveria “prestar mais atenção”, que não entendiam como alguém “tão inteligente” conseguia cometer erros tão primários quando na verdade existia um motivo pelo qual o 7 virava um 1 no meio da resolução de um problema de matemática ou eu não saber usar corretamente maiúsculas e minúsculas quando escrevia.
Mas a dislexia não é só algo que atrapalha a leitura, ela realmente muda a forma como você pensa e aborda problemas. Sim, às vezes isso é uma desvantagem, mas algumas pessoas, como o próprio Richard Branson, acreditam que isso é uma vantagem. Dizem que a dislexia nos faz pensar lateralmente.
Não sei exatamente o que isso significa, mas acho bonito.
O fato é que a abordagem tradicional de ensino não funciona para a maior parte dos disléxicos e, pior, atrapalha o desenvolvimento. Você aprende alguns macetes e consegue levar uma vida normal (ahem) e inclusive ser um bom aluno, mas é um esforço hercúleo às vezes. As escolas não estavam preparadas para alunos como eu na minha época escolar e, julgando pelas escolas em que minha filha e os filhos de amigos e conhecidos estudam, ainda não estão.
E aí que entra o Professor Tonho. Eu podia usar o nome verdadeiro dele porque não me importo e espero que o sujeito já esteja com o Diabo fazendo cócegas em seu furico com um tridente há muito tempo, mas é melhor não. O Tonho foi meu professor de Matemática A no terceiro ano do colegial, o popular terceirão. Diziam que ele estava para se aposentar, mas resolveu dar aula por mais um ano por pedido dos alunos do ano anterior porque, supostamente, era um dos melhores professores da escola. Provavelmente ele falava isso todos os anos. De fato, Tonho era um professor muito querido por todos. Eu mesmo gostava muito dele na época. Ele era o arquetípico professor de cursinho coroa. Cabelos grisalhos, as mesmas piadas todo ano que sempre funcionavam porque era com uma audiência nova e ele sempre tinha milhares de macetes à mão.
E aí que começam os meus problemas com o Tonho. Muitos dos macetes ensinados pelos professores de cursinho são mnemônicos, geralmente acrônimos, e nós disléxicos somos péssimos em lembrar as coisas. Datas de aniversário, telefones, números de documentos, tudo que pra muitos de vocês é fácil pra nós é difícil pra cacete. Eu posso ouvir um número de telefone e se eu não anotá-lo imediatamente, ele vai sumir da minha cabeça tão rápido quanto o próprio Lewis Hamilton.
Você que ainda está me lendo talvez esteja achando que eu estou tirando este professor de cursinho pra Cristo. Sim, eu estou, e não me importo. Eu poderia aplicar as mesmas queixas até aqui para inúmeros professores que tive ao longo da vida, inclusive alguns da faculdade, mas estou jogando todas estas frustrações por causa de outras duas características fundamentais. A primeira destas é seu bordão: “É trivial.”
O padrão era sempre o mesmo, apresentava uma questão de vestibular antiga do ITA, aquelas medonhas que só que fez kumon desde o berço consegue resolver na lousa e perguntava pra turma se eles sabiam como resolver. A turma toda olhava de volta com cara de ponto de interrogação ou de que ao se deparar com uma questão dessas no vestibular iria sentar e chorar feito criança pequena. Depois de alguns instantes, bradava “Ora, mas isto é trivial!” e resolvia a questão tão fácil e rápido quanto uma faca quente na manteiga.
É claro que muitos não conseguiam resolver o que pra ele era trivial, afinal é Matemática, e Matemática é um troço difícil pra cacete. Se fosse fácil não teriam medalhas e honrarias para matemáticos e nem fariam filmes sobre matemáticos famosos. Eu até hoje não sei o quê diabos é um Binômio de Newton e logaritmos são um mistério completo pra mim. O que era trivial para alguém com graduação em Engenharia que dá aula há muitos anos na maior parte das vezes não é tão simples para um estudante secundarista.
Eu quase reprovei em Matemática no terceiro ano. Eu já estava aprovado em diversas matérias no terceiro bimestre, inclusive em português e redação, mas somando menos de 10 pontos em Matemática. Sempre passei raspando na matéria, que nunca foi meu forte, mas no terceiro ano, com provas cheias de questões dos vestibulares do ITA e da FUVEST, a dificuldade cresceu exponencialmente. Nada daquilo não era trivial pra mim e independentemente das minhas dificuldades pessoais, vários outros alunos sofreram com aquilo
Mas aí vinha a humilhação de verdade:
“Se vocês não conseguirem resolver isso, vocês não vão passar no vestibular nem pra ‘artes culinárias’!”
Faz parte da cultura dos cursinhos mostrar estatísticas para atrair mais alunos. Enchem a boca para falar os tantos que foram aprovados na Federal, mas só importam mesmo os que passaram pra Medicina, Engenharia ou Direito. Eu lembro de ter encontrado um outro ex-professor anos e contar pra ele que havia finalmente passado na Federal e ouvi um “Ah, podecrer” sem emoção quando disse que estava cursando Ciências Sociais. Nós, que decidimos ir pras Humanas e outras áreas menos prestigiadas, somos párias nas estatísticas dos cursinhos.
Há vinte anos atrás, quando eu estava entrando na universidade, cursos como Gastronomia eram raros e muitas vezes desconhecidos. Mesmo considerando o prestígio que a profissão vem ganhando nos últimos anos por conta de programas como o Masterchef e o reconhecimento de diversos chefs no Brasil, ainda é uma profissão extremamente desvalorizada. Cozinheiros, como a própria comida, são um dos pilares do nosso cotidiano, mas para o Tonho são motivo de chacota. Nós, os que não conseguíamos resolver os problemas não éramos dignos de aprovação no vestibular e seríamos relegados à uma casta inferior na sociedade. Não seríamos advogados ou médicos. Não seríamos professores ou jornalistas.
Seríamos meros cozinheiros.
Uma única vez uma aluna questionou ele sobre sua predileção em achincalhar as “artes culinárias” e foi recebida por vaias da turma e deboche do professor. Ele se valeu de sua posição de autoridade em sala e seu status de popularidade na escola pra desmerecer a queixa dela, que era extremamente válida. Os anos se passaram, eu entrei na universidade e eu esqueci do professor Tonho, do cursinho e da escola em geral. Afinal, quem tem boas lembranças da escola bom sujeito não é. Não pensei nele por anos e não tinha problematizado (ahem) nada disso até muito recentemente, muitos anos depois de passar pelas cadeiras de licenciatura ou mesmo saber que eu sou disléxico. Esqueci também dessa moça e que talvez eu também tenha entrado na onda da turma e vaiado ela.
A escola para muitos de nós foi um período cruel e difícil. Alguns traumas que o período escolar deixa na gente ficam pra vida toda. Talvez os piores sejam os que os professores deixam na gente, aqueles que nos fazem sentir incapazes e incompetentes. Aqueles que podam nosso potencial e nos derrubam no chão sem nos dar chance de levantar e tentar de novo. Muitas vezes o que passamos com nossos colegas já é suficiente para nos marcar e ainda ter que lidar com o sentimento de se sentir menosprezado e humildado por um professor é triste demais.
Para este professor, e tantos outros que tive ao longo dos meus anos em sala de aula, eu só tenho uma coisa a dizer:
Trivial é a minha mão na sua cara, seu velho elitista arrombado. Pegue fogo e morra.
E você aí, você mesmo, que tá compartilhando meme da porra do Paçaro da Dislexia e achando engraçadinho, enfia essa merda no seu cu. Lateralmente.