Café Frio e Requentado: O pior chefe que eu tive na minha vida

De todos os chefes ruins que eu tive na minha vida, eu consigo dizer facilmente qual foi o pior.

Alexandre Aimbiré
10 min readJul 21, 2020

Assim como acontece com os professores, nós nunca esquecemos os chefes ruins. Alguns deixam uma marca indelével e asquerosa na memória. Um desses chefes era o dono de uma agência em que eu trabalhei uns anos atrás.

Meus amigos já sabem muitas das histórias desta época e cheguei a contá-las quando participei de uma pesquisa sobre assédio no ambiente de trabalho no começo deste ano. Sim, este chefe é tão ruim que foi pauta de uma pesquisa sobre assédio no ambiente de trabalho. Ao responder as perguntas pelo telefone, ouvi algumas interjeições como “Meu Deus!” e “Que horror!” da entrevistadora e até ouvi um “Que filho da puta!” seguido de um pedido de desculpas pela quebra de protocolo.

Mas antes de contar esta história, este chefe terrível precisa de um nome. Não posso usar seu nome verdadeiro por motivos óbvios e porque eu não quero dar mais trabalho pra minha advogada. Pensei em alguma coisa que refletisse sua personalidade como “O Pol Pot do Sacomã”, mas acho que o finado líder do Khmer Rouge não merece tal associação. Pensei em usar alguma referência ao Biff Tannen da Trilogia De Volta para o Futuro, mas não era me parecia suficientemente asqueroso. Então vou usar um nome completamente inócuo para me referir a ele, como Rogério, um nome que poderia ser de um personagem secundário de pornochanchada.

Nada pessoal contra ninguém chamado Rogério, até porque acho que não conheço nenhum Rogério.

Não sou um sujeito particularmente rancoroso (ahem), mas algumas pessoas merecem ser odiadas. Rogério é uma dessas pessoas e ele merece porque não existe uma qualidade sequer que o redima. Ele não é particularmente talentoso ou inteligente, e também não é estúpido o suficiente para ser digno de nota. Ele também não é particularmente feio, você poderia passar por ele na rua sem notá-lo. Ele não é engraçado, nem perto do suficiente pra rir da piada do chefe. Ele não é um chefe competente, muito menos um líder, mas talvez seja um bom vendedor e eu não considero isso uma virtude. Sua personalidade é difícil, ele não canta afinado e aposto que ele tem pés feios, sujos, cheios de frieiras e unhas encravadas. Ele é só um amálgama de um monte de coisas horríveis enfiadas num corpo com ombros largos demais pra sua cintura e uma cabeça grande demais para um pescoço praticamente ausente sobre os ombros imensos.

Todo muito tem amigos e conhecidos com suas peculiaridades menos toleráveis, mas antes dele nunca havia conhecido alguém composto inteiramente por características negativas, o mais puro suco de horrível com aroma artificial de desodorante de velho.

Não vou dizer que o trabalho era particularmente ruim porque existem trabalhos bem piores, como reciclar papel higiênico por exemplo, mas um dia no escritório não era de todo ruim quando Rogério não estava lá. Os dias passavam tranquilos, as pessoas riam, falavam amenidades, levantavam pra buscar café. Um ambiente normal, digamos. Quando Rogério entrava no escritório era como se um vilão de desenho animado tivesse passado pela porta.

Cruela de Vile meramente ilustrativa.

O silêncio não imperava no escritório quando Rogério estava em sua mesa porque ou ele estava ao telefone, sempre falando muito alto, ou gritando com alguém, geralmente com o Fred.

Pobre Fred.

Fred (é claro que esse não é o nome dele) era o responsável pelos anúncios na agência e boa parte do dia de Rogério se passava gritando com aquele pobre coitado. Quando ele não estava gritando com o Fred, ele estava gritando com a moça do financeiro, que por acaso era sua esposa. O que mais se ouvia naquela sala eram palavrões, geralmente uma combinação de palavrões como “Porra, caralho” e alguma reclamação como “Você não faz nada direito” ou “Eu já falei pra fazer isso desse jeito” ou ainda “Não, não, porra”.

Fred um dia sumiu sem explicações e a pessoa responsável por mídias sociais começou a acumular as funções.

Sumir sem explicações era uma coisa corriqueira na agência. A analogia da porta giratória usada com frequência nas agências não é suficiente, a rotatividade na agência era mais próxima a uma máquina de teletransporte. Um dia a pessoa estava lá, no outro não estava mais e ninguém sabia para onde ela tinha ido. Não estou falando apenas de colaboradores. Um dos sócios de Rogério simplesmente desapareceu um dia. Sua mesa estava limpa, seu casaco sumiu do cabideiro e seus acessos foram misteriosamente revogados.

Fico me perguntando se o cadáver do pobre Fred não está escondido nas paredes da agência junto com os outros ex-sócios do Rogério.

Além de trabalhar com a esposa, a vida doméstica do Rogério se misturava com o trabalho de muitas maneiras diferentes. Ás vezes ele ia para o trabalho de bicicleta e nesses dias a bike ficava escorada na parede quase na frente da porta de entrada.

A bicicleta do Fred, claro, ficava na rua.

Uma das estações de trabalho no fundo da sala estava vaga e sempre estava entulhada de tralhas que ele trazia de casa. As múltiplas ligações que ele atendia no horário de trabalho muitas vezes eram pessoais. Se você acha que a maneira que ele tratava a esposa dele é horrível, você deveria ouvir uma ligação com a mãe dele.

Rogério almoçava na sua mesa, uma hora mais cedo que o resto do time. Ele não ia até a copa como todo mundo, inclusive sua esposa, fazia. A faxineira esquentava sua marmita e levava até ele e ele comia na mesa, com um AirPod numa orelha, mastigando de boca aberta. Eu quase consigo sentir o cheiro de legumes meio azedos e frango temperado com cúrcuma demais. Ele também não lavava a própria louça.

Rogério tirava os sapatos no trabalho e andava pelo escritório de meias.

Sim.

Eu tenho certeza absoluta que o Rogério é o tipo de pessoa que faria isto num avião.

Rogério é um sujeito extremamente preconceituoso, machista e racista. Ele sempre fazia referências antissemitas em ligações com amigos quando falava de um cliente em particular que era judeu, coisas como “Sabe como é judeu, né? Não abre a mão pra nada”. Ele segurava o machismo dele porque uma das analistas da agência brigaria com ele por isso. Ele, inclusive adorava lembrar todo mundo disso dizendo coisas como “Não vou falar o que eu acho porque se não a Carla vai brigar comigo”, e dava uma risadinha baixa enquanto a Carla (também não é o nome dela) rolava os olhos resignada e fingia que não estava ouvindo. Ele estudou numa das faculdades mais caras de São Paulo e se gabava disso. “A gente que estudou na (insira nome de faculdade de playboy aqui) é a elite da elite.”

Bicho, se você fosse a elite da elite você não tava vendendo site por alguns trocados.

Eu sei que parece que eu estou exagerando ou mentindo. Eu juro que eu gostaria que isso tudo fosse mentira, mas é a mais pura verdade. Mas acima de tudo isso, o que faz de Rogério a pior pessoa pra quem eu já trabalhei na vida é que ele acha que é um cara legal. Sim, o sujeito que anda de meia pelo escritório e mastiga de boca aberta com um AirPod em uma das orelhas enquanto grita com todo mundo acha que é um ótimo sujeito e uma excelente companhia. O cara que dominou a mesa da churrascaria no almoço de fim de ano.

Ainda bem que eu estava sentado na ponta.

Como Rogério se via naquele almoço.

Você talvez esteja se perguntando como eu aguentei tudo isso. Porque eu fiquei lá durante quase cinco meses, todos os dias aturando um sujeito como o Rogério. O que acontecia é que por mais irritante e terrível que o comportamento do Rogério fosse, ele nunca era direcionado a mim. Ele nunca levantou a voz pra mim, nunca foi grosseiro comigo e quando falava comigo era só pra me passar trabalho, sempre com um tom de voz normal. Nesse tempo ele me deu um único feedback. que eu recebi dele foi no terceiro dia de trabalho. Ele se queixou que eu sempre chegava atrasado, o que não procedia porque eu havia combinado com o sócio desaparecido que eu teria horários flexíveis. Ouvi de volta que flexível era “poder entrar entre 9h00 e 9h30” e que eu deveria chegar nesse horário porque meu suposto atraso estaria atrapalhando as reuniões diárias.

A gente não fazia reuniões diárias. Em cinco meses não foi feita uma sequer.

No terceiro dia eu já estava decidido a sair, mas não podia voltar para o meu emprego antigo, e cometi a infelicidade de trocar de trabalho perto do fim do ano. Não haviam muitas vagas disponíveis. Eventualmente eu consegui outro trabalho e fui alegremente pedir demissão. Eu não pretendia terminar o dia lá, eu só queria ir embora para nunca mais voltar.

Naquele dia eu cheguei atrasadíssimo na agência porque tinha feito uma entrevista do outro lado da cidade e quando eu abri a porta o caos estava instaurado. O Rogério estava em outra sala, de portas fechadas, falando no telefone aos berros. Olhei para o desenvolvedor que era meu par e ele estava branco de pânico e imediatamente ele me pediu ajuda pra resolver um problema. O site de um cliente novo estava quebrado. Liguei minha máquina, olhei pro código e percebi imediatamente que o designer que era medito a programador, que por acaso era o favorito do chefe, subiu código sem pegar as alterações que eu havia feito antes. Ele vivia fazendo isso, era ridículo. Em menos de cinco minutos o problema estava resolvido.

Como as pessoas olham pra você quando você resolve um problema em instantes (e era só uma chave aberta).

Enquanto eu ria e explicava o problema para meu colega, Rogério me chamou na sala. Eu entrei e ele fechou a porta atrás de mim e se sentou à mesa. Em nenhum momento ele me estendeu uma cadeira ou levantou os olhos a mim.

“Alexandre, você tá fora.”

Eu fiquei quieto, olhando fixamente para ele. Os olhos ainda virados pra suas mãos postas sobre a mesa.

“Nós não vamos mais precisar dos seus serviços.”

Os últimos cinco meses correram pela minha mente como se fosse um daqueles flashbacks que as pessoas dizem ter quando estão à beira da morte. Eu nunca deveria ter trabalhado lá, não deveria ter aceitado a proposta, por mais atraente que ela fosse. Todo o horror daqueles meses passava como cenas de um filme, mas naquele momento eu só conseguia pensar em uma coisa:

Rogério esquentava seu café no microondas.

O café da agência era notoriamente o pior café que eu tive o desprazer de beber em toda a minha vida. Eu preferia caminhar um quilometro e meio todos os dias e ir até uma padaria e pagar por um café do que beber aquilo. O Rogério além de beber aquele caldo preto nojento, ele esperava esfriar para então esquentar o café numa caneca de ágata no microondas. Ele dizia que gostava mais assim.

Sim, esta é a única reação possível.

“Que bom, Rogério, porque eu tinha vindo aqui só pra dizer que eu tava de saída.”
“Ah, tá tudo certo então. Pode ir pra casa, eu te pago pelo dia de hoje.”

Ele não me olhou nos olhos e falou como se tivesse me fazendo um favor. Saí pela porta, juntei minhas coisas, apaguei meus acessos do computador sob protesto, acho que ele tinha medo que eu deletasse alguma coisa séria, me levantei e enquanto abria a porta enchi os pulmões pra falar:

“Falou galera, boa sorte aí e até nunca mais.”

E bati a porta com força atrás de mim.

Eu não tinha nem chegado na estação quando liguei pra minha advogada pra saber se havia algo que podia ser feito. Até tinha, mas considerando a infame Nova CLT, era muito barulho por nada. Assim, me satisfiz em deixar uma avaliação ruim no Glassdoor e uma entrada mal educada na famigerada Planilha das Agências. Eu também tirei eles do meu LinkedIn e do meu currículo.

Claro, a memória é uma coisa complicada e eu pensei que talvez estivesse sendo muito duro com o Rogério. “É o meu ódio falando alto demais”, eu pensei. Mas um comichãozinho atrás da orelha me dizia para olhar novamente o Glassdoor. As avaliações das pessoas que passaram por lá depois de mim eram ainda piores que a minha. Um chegou a dizer que a única coisa boa da empresa é que ela fica próxima ao Metrô.

E nem fica tão próxima assim.

Depois deste exorcismo espiritual em forma de texto, não voltarei a pensar nele, em sua agência, no pobre Fred ou mesmo no café requentado por muito tempo. De lá, levo apenas o nome da churrascaria onde foi a confraternização de fim de ano que era excelente e uma quantidade ridícula de plays de músicas da Alice in Chains no meu perfil do last.fm. Espero sinceramente pelo bem da humanidade que ele pegue fogo e morra num futuro próximo, bem longe de mim de preferência.

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Alexandre Aimbiré
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Written by Alexandre Aimbiré

Literature Student. Weekend Sociologist. Father. Husband. I write in English and Portuguese about whatever I feel like, but mostly about Music and Literature.

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