O bilhete escondido

Um conto

Alexandre Aimbiré
3 min readAug 23, 2021
Foto de Kisetsu Co em Unsplash

Ela tinha por hábito esconder bilhetes nas minhas coisas. No meio do maço de cigarros, no bolso da jaqueta, entre as camisetas dobradas no armário. Já encontrei bilhetes nos lugares mais inusitados. Certa vez ela escondeu um dentro da caixa de chá, dobrado em meio aos envelopes coloridos que protegem os sachês de earl grey. Eu demorava dias, às vezes até meses, para encontrá-los. Hoje ela escondeu um na minha carteira, em um daqueles bolsinhos que normalmente ficam cheios de recibos impressos em papel térmico com transações de crédito ou débito, ou fichas bebida da balada. Estava junto da via da última vez que fomos ao drive thru do McDonald’s. Ela pediu um big tasty e um milkshake de morango.

Hoje eu não demorei para encontrar o bilhete.

Nunca mexo naquela entrada na carteira, mas algo me chamava de lá, como se o próprio bilhete estivesse gritando meu nome, implorando pra ser lido.

Cada bilhete que ela escrevera era diferente do anterior. Eles nunca eram escritos com a mesma caneta ou no mesmo tipo de papel. Nada tedioso e comum como uma caneta esferográfica azul sobre papel sulfite. Era como se cada um deles tivesse sido escrito por uma pessoa diferente. Ela dizia que eram as suas “representações do eu na vida cotidiana”, as máscaras de teatro grego que ela usava pra representar diferentes personagens. Alguns bilhetes tinham um versinho, escrito por ela ou copiado de algum lugar. Era comum encontrar um verso roubado de poema do Baudelaire ou do Drummond, uma estrofe de uma música, ou uma citação de algum filme que ela sabia que eu gostava. As vezes era o endereço de um site ou a arroba de um perfil no Twitter. As vezes era um pedido pra comprar algo no mercado, uma fruta ou a granola que ela gostava de comer de manhã. Uma vez era um horário e um local. Não sei quando ela escreveu esse, ou se ela ficou me esperando lá no dia que ela deixou o bilhete e eu só fui encontrá-lo muito depois do dia. Os bilhetes sempre cabiam em uma frase, mas nunca formavam uma carta completa.

Cada dia era uma pessoa diferente que me deixava um bilhete diferente, se comunicando com o eu do futuro.

Acordei e o pé dela não estava escorado na minha perna. Dormíamos abraçados. Geralmente eu a abraçava por trás e aninhava meu rosto em meio aos seus cabelos. Quando eu acordava, sempre estava de costas pra ela, dormindo virado pra janela do quarto. O pé dela sempre estava escorado na minha panturrilha, a sola abraçada nela e os dedos repousando na minha pele. Era como se ela tivesse me procurando durante a noite, precisando de uma parte dela tocando meu corpo. Acordei nu, mas não vi as roupas dela atiradas pelo quarto, nem ela não estava lá. Eu estava sozinho. A bolsa dela não estava atirada no sofá. Nem os tênis brancos ao lado da porta. Não havia ninguém pra conversar na cozinha enquanto passava café, ou no banheiro tomando banho com pressa para ir para o trabalho. O reflexo distante do espelho no corredor estava vazio. O silêncio era minha única companhia. Nem uma palavra sequer saiu da minha boca.

Ela saiu como um ladrão, na calada da noite. Eu não a ouvi levantar, muito menos sair. A porta estava destrancada e sobre a mesa da sala estava a cópia da chave da minha casa que eu havia lhe dado com o chaveiro que ela comprara nas nossas férias juntos. Eu ouvia as folhas farfalhando lá fora, mas não ouvia os passos dela pela casa, nem a voz dela cantarolando a música que passaria o resto do dia na minha cabeça. A casa estava vazia, oca, como se ela tivesse levado a alma dela junto e deixado o bilhete no lugar. Sentei no sofá, ao lado de onde ela estaria e olhei para a estante. Os livros dela ainda estavam ali.

O bilhete estava na minha mão. Demorei pra criar coragem pra ler. Era um pedaço do papel de embrulhar pão, dobrado em quatro, formando um quadrado. Desabrochei-o lentamente. Os olhos ainda não tinham se familiarizado com a claridade. Dentro, escrito com lápis de sobrancelha, havia apenas uma palavra, riscada no meio.

Acordei de um sonho com ela para descobrir que eu não fazia mais parte de sua vida.

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Alexandre Aimbiré

Sociólogo de boteco, estudante de Letras, guitarrista ocasional, pai, marido e leitor ávido de caixas de sucrilhos. Leio e escrevo sobre o que me dá na telha.