Os Livros do Meu Avô, ou o Desapego

Algumas pessoas deixam muito mais que saudades.

Alexandre Aimbiré
9 min readAug 2, 2020

Eu não lembro quando comecei a ler ou a me interessar por livros. Muitas vezes sinto que é algo que sempre fez parte de mim. Minha mãe diz que eu aprendi a ler sozinho aos quatro anos. Um belo dia estava a ler palavras soltas por aí. Desde então os livros e as histórias sempre fizeram parte de mim. Eu era fascinado pelas letras e pelas palavras. Quando entrei na escola na Espanha, ensinaram as letras como se fossem personagens. El Rey o, e La Reina a e seus filhos, as outras vogais, eram príncipes e princesas. O resto do alfabeto seus súditos.Na Inglaterra, após a hora do almoço, toda a classe tinha um período de meia hora para ler. Eram livros escolhidos especificamente para nossa idade e fase de desenvolvimento.

Sim, eu estudei o equivalente à segunda e terceira séries numa escola em Stockport, um suburbio de Manchester na Inglaterra. Sim, eu usava um uniforme com gravatinha e a escola tinha um brasão com um grifo, igualzinho o Harry Potter. Eu até postaria uma foto, mas elas estão no sótão da casa da minha mãe e eu não vou submetê-la a esta tarefa.

Muitas vezes nossa professora, a Missus Smith, lia para nós. Foi assim que eu tive meu primeiro contato com Roald Dahl, que até hoje é um dos meus autores favoritos. Ela nos leu A Convenção das Bruxas. Se você só viu o filme, recomendo fortemente ler o livro também. O mesmo vale pra qualquer livro dele que foi adaptado para o cinema.

Carreguei o hábito quando minha família voltou pro Brasil, apesar de sofrer bullying por isso. Nunca entendi e sigo sem entender porque gostar de ler e ser “inteligente” é uma característica a ser repreendida entre meninos. O hábito da leitura também não era estimulada nas escolas que estudei em Porto Alegre. Era como se não existissem livros além dos livros texto que usávamos nas matérias escolares. Apesar de tudo, segui firme. Os livros eram meu escape, um lugar seguro onde eu podia estar. Eu lia na cama e meus pais, que sempre me encorajaram muito nesse sentido, compraram uma lâmpada com garra para prender na cabeceira do beliche que eu dividia com meu irmão mais novo e poder continuar lendo à noite no nosso quarto sem perturbá-lo com a claridade. Meus pais, apesar de terem sofrido um bocado financeiramente nos Anos 90, nunca deixaram de me manter abastecido de livros novos. Eu terminava um e logo já tinha outro à mão.

Quando nos mudamos pra Florianópolis, fui estudar em uma escola que tinha uma feira anual de livros e cada aluno deveria escolher um livro pra ler e resenhar por bimestre entre os livros separados para o seu ano. A maioria dos livros era da finada Série Vaga-Lume da Editora Ática. Os livros são bons, mas eu estava adiantado demais pra eles. Já tinha lido minha cota de literatura infantojuvenil e parti para outras coisas. Minha professora de português percebeu isso e me passou uma lista de livros alternativa para eu ler e resenhar. Li Dom Quixote por recomendação dela. A versão resumida, é claro.

Mudei de escola no colegial e aí chegaram as temidas listas de vestibular. Imagino a dificuldade de meus colegas que até o ano anterior estavam lendo O Escaravelho do Diabo por obrigação tendo que ler Bandoleiros do João Gilberto Noll igualmente forçados. Tive uma professora de Literatura excelente nessa época chamada Maristela. Gostaria de poder encontrá-la e agradecê-la por tudo que ela fez por um Alexandre púbere que ainda estava tentando descobrir seus gostos e apreços. Além de falar sobre as chatices de movimentos literários, ela me ensinou a contar sílabas poéticas e a gostar de cinema, não só assistir os blockbusters pipoquentos que passavam no cinema do shopping.

Nesse meio tempo apareceu meu avô. Parece estranho dizer que meu avô apareceu na minha vida quando eu era adolescente, mas foi nessa época em que começamos a notar um ao outro de verdade. Sempre fui mais distante da família do meu pai, principalmente por causa da distância geográfica. Sempre moramos no Sul enquanto eles sempre moraram no Interior de São Paulo. Um belo verão meus pais resolveram que precisavam de férias dos três filhos (justíssimo, por sinal) e deixaram meus irmãos e eu com meus avós em Campinas. Alternávamos entre as casas dos nossos tios, mas eu acabei passando mais tempo com meu avô, Celso Aimbiré.

Meu avô tinha um escritório com uma escrivaninha tipo xerife, aqueles modelos com uma porta de correr que fecham, e uma infinidade de livros na estante. Ao contrário da estante dos meus pais, recheada de livros técnicos e religiosos, a estante do meu avô era diversa e colorida. Volumes infinitos quase infinitos de Shakespeare e Marx, Nietszche e Galleano, García Marquez e Spinoza, e tantos outros. Ele gostava de tango, era apaixonado por Carlos Gardel e não entendia como eu conseguia ouvir rock, muito menos tocar contrabaixo. “Um instrumento bobo”, ele dizia. Curiosamente, ele tinha uma coleção de bonecos de bêbados de cerâmica que era a coisa mais kitsch do mundo. Tudo começou com um conjunto de quatro frades bêbados abraçados em barris de vinho. Ele comprava um novo a cada cidade por onde passava e cada um dos filhos trazia um novo para a coleção cada vez que voltava de viagem.

Até aquele verão ele era só o pai do meu pai e eu era só o neto mais velho.

Ele tinha jeito com crianças, mas acho que nunca soube lidar com adolescentes, mas, afinal, quem sabe? Ele era corretor de café por profissão, apesar de que eu suspeito que ele sempre quis ser jornalista. Era comum ele sair para fazer algum negócio e passar o dia todo fora. Um desses dias, minha vó convenceu ele a me levar junto. Meio resignado, eu fui. Quase consigo ouvir minha vó falando “Vai, Alexandre”. E eu fui. Entramos no carro e fomos pra alguma outra cidade próxima e os primeiros minutos foram de silêncio. Não lembro quem quebrou o gelo, provavelmente ele, mas no resto do caminho conversamos sem parar sobre tudo. Eu não conhecia meu avô e nem ele a mim, mas fomos trocando experiências, leituras e eu estava cada vez mais fascinado pela bagagem dele. Os países que ele tinha visitado, as coisas que tinha feito, os livros lidos e discos ouvidos. Apesar de sempre olhar os livros na estante, nunca tinha conversado com ele sobre nada disso. Talvez tenha sido só a falta de oportunidade. O tempo que passávamos juntos era curto e sempre estávamos envolvidos com funções de família.

Naquele verão começamos a ver um pouco de cada um no outro.

Eu já tinha um amor pelas letras e pelos livros e meu avô foi um catalisador disso tudo. Poucos anos depois eu começaria a cursar Ciências Sociais, algo que ele aprovou, dizendo que tinha muito mais a ver comigo do que o Direito, o curso que eu havia começado e largado antes. Nunca mais tivemos o mesmo tempo juntos depois daquele verão, mas sempre que eu estava em Campinas conversávamos na hora do café enquanto líamos o jornal. Ele começava pelo primeiro caderno e pelo de política, eu pela Ilustrada e íamos trocando.

Aprendi a ler jornal com ele. Meu avô não tinha muito dinheiro quando era mais novo, então tinha que ler o jornal na banca e deixá-lo impecável de volta na prateleira como se o exemplar fosse novo. Ele também me ensinou a gostar de café. Os grãos, a torra, como coar e como servir. Seu café é até hoje o melhor que eu bebi em toda minha vida.

Alguns anos depois, meu avô veio a falecer de câncer. Uma forma meio agressiva de câncer renal. No Natal parecia estar tudo bem, na Páscoa ele estava magro e abatido. Ele me ligou no meu aniversário e alguma coisa me dizia que seria a última vez que eu falaria com ele. Dois dias depois ele foi internado onde ele veio a falecer dois dias depois numa sexta-feira. Meu pai me avisou, recebi a mensagem quando estava saindo da aula aquele dia. Não pude ir ao velório. Foi tudo muito súbito e as passagens aéreas na época não eram tão baratas como alguns saudosos do Governo Lula querem lembrar. Visitei o cemitério onde ele foi enterrado meses depois.

Minha avó, Josefina, faleceu no ano passado, doze anos depois do marido e após uma longa jornada com o Alzheimer. As coisas do meu avô ficaram anos em caixas, guardadas, longe dos olhos de qualquer um. Logo após me mudar de Florianópolis para São Paulo, fui visitar minhas tias e minha avó em Campinas e fui ver o que restava. A maior parte dos livros, guardados em caixas e expostos a toda sorte de coisas ruins foi perdida para o mofo e para o tempo. Foi-se uma pasta com os recortes que ele guardava dos jornais, que sempre publicavam cartas dele e um exemplar raro de poemas do Neruda em espanhol que ele estava traduzindo pouco antes de falecer. Alguns poucos se salvaram, junto com os quadros que decoravam a parede do escritório e que hoje estão na minha casa. Nos quadros, memórias dele da inauguração da fábrica da Mellita em Avaré, fotos de soldados sem nome da Revolução de ’32, e um certificado do ouro que foi “doado” por minha bisavó, a Dª Viúva Aymbiré, para a luta.

A aliança de casamento da minha bisavó ajudou a financiar a construção deste prédio.

De toda a biblioteca do meu avô, sobraram apenas onze livros em estado razoável, os mesmos que ilustram a imagem de capa deste texto. Enquanto escrevo, alguns estão esperando seu destino final, o lixeiro. Estão danificados demais e irrecuperáveis. Cogitei doá-los, mas seria o mesmo que doar roupas rasgadas ou, considerando o estado deles, lençóis contaminados com varíola. Ao mesmo tempo, olho para eles e penso que eles eram do meu avô, o que torna o processo de descartá-los doloroso e difícil. Desapegar é difícil, até mesmo para uma pessoa como eu que tem hábitos minimalistas e uma frequência afetiva relativamente baixa. Olho para os livros e vejo uma parte da minha história e da minha família que não foi cuidada com o esmero que merecia e acabou relegada pela urgência do presente.

Não foi meu avô que me deu meu primeiro livro, muito menos me incentivou a ler. Tenho a agradecer aos meus pais por isso, principalmente à minha mãe por ter me feito insistir na leitura (e também em aprender música e a tocar um instrumento, mas isso fica pra outro texto). Mas por algum motivo, meu eu adolescente associou meu avô à intelectualidade e isso me instigou a continuar. Era uma coisa que podíamos dividir um com o outro, que eu tinha orgulho em mostrar uma leitura nova ou uma opinião polêmica, muitas vezes destroçada sem dó por um senhor que levava a ideia de fazer Filosofia com um martelo talvez um pouco a sério demais.

Todos os dias eu sinto a sua falta. Toda vez que tomo um café ou que falo de política. Toda vez que falo mal do Lula ou de alguma estrepolia dos governos petistas eu me pego pensando se não estou citando ele verbatim. Não concordávamos em tudo, o buraco geracional entre nós era imenso. Eu era o adolescente rebelde de cabelos compridos e bagunçados falando obscenidades e muitas vezes pretensioso demais. Ele era um homem à moda antiga. Nunca o vi com os cabelos despenteados ou com as calças abarrotadas. Nunca vi ele levantar a voz, nem se alterar. Nem uma só vez. Éramos obviamente diferentes e nunca fomos tão próximos, mas na essência éramos muito parecidos. Kindred spirits, como diriam os britânicos.

Guardei os onze na minha estante, junto com os livros que comprei e ganhei (e roubei) ao longo de trinta e sete anos de vida. Agora são meus, mas como muitos dos que estão ali, já foram de outra pessoa. Eles tem história, e mesmo que eu nunca leia nenhum deles (ou releia, no caso do Gabo e do Galleano), eles fazem parte da minha história agora. Quanto aos livros perdidos, melhor deixar pra lá. Eles só tornam estes onze que restaram ainda mais preciosos e especiais.

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Alexandre Aimbiré
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Written by Alexandre Aimbiré

Literature Student. Weekend Sociologist. Father. Husband. I write in English and Portuguese about whatever I feel like, but mostly about Music and Literature.

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