O Rei que Nunca Existiu

Sobre mitologia arthuriana, Bernard Cornwell e meus livros favoritos.

Alexandre Aimbiré
7 min readDec 29, 2020
Foto de Kevinsphotos em Pixabay.

Alguns períodos das nossas vidas são cruciais, os ditos anos de formação. Entre os meus mais importantes, a minha terceira infância, entre os seis e os nove anos, talvez tenha sido o mais importante.

Como já mencionei em outro texto, passei parte da minha infância na Inglaterra. Enquanto meu pai fazia doutorado na prestigiosa Manchester Business School, eu estava na segunda série com a Ms. Morris na All Saints School em Stockport, uma cidade vizinha. Não há nada de realmente notável neste subúrbio do berço da Revolução Industrial (além de ser a cidade natal do baixista da Blondie), mas foi lá onde eu tive uma educação tipicamente inglesa por pouco mais de dois anos. Eu vivia num brick e sonhava com cavaleiros e castelos, batalhas épicas, donzelas em perigo e criaturas mitológicos. As duas escolas em que eu estudei eram financiadas pela Igreja Anglicana e sempre contavam a história de São Jorge, o padroeiro da Inglaterra, e sua luta contra o temível dragão.

Nunca contaram pra gente que ele nasceu na Capadócia e provavelmente era grego e não inglês, mas melhor deixar isso pra lá.

Na foto: Um grego (Foto de Devanath no Pixabay).

Na escola estudamos a história da Inglaterra Medieval, desde a Batalha de Hastings em 1066 e até as Cruzadas. Desenhamos nossos próprios escudos e os montamos no verso de caixas de sucrilhos para serem colocados em exposição na sala, como se fosse o salão de um castelo. Ainda nessa época, meus pais me levaram para o Castelo de Warwick, um dos mais antigos e bem preservados castelos da Inglaterra. Fundado pelo próprio Guilherme I, o Conquistador, a família que era proprietária do castelo acabou falindo e o vendeu para o Grupo Tussauds, que o mantém hoje.

Mas talvez o que mais manteve viva a obsessão pelo tema foi o A espada era a lei, da Disney, e os livros da série O Único e Eterno Rei, de T.H. White, cujo primeiro livro, A Espada na Pedra, foi a inspiração para o filme. Eu, magricelo tímido e estabanado, me via muito no jovem Wart e esperava a chegada de um Merlin que vive a história inversamente, da mesma maneira como alguns de vocês esperaram pela cartinha de Hogwarts quando eram mais novos.

Pura magia da Disney em um gif.

Não muito depois eu voltei ao Brasil e não era mais a mesma criança. Os castelos na minha vida eram apenas dos de LEGO, que eu economizava cada centavo para poder comprar. Um pouco depois, meus amigos e eu descobrimos o RPG. Como eu já tinha lido O Hobbit, eu já estava imerso naquele cenário. Era um mundo familiar para mim: Dragões, trolls, cavaleiros e salteadores, arqueiros e magos. Jogar RPG era como estar dentro das aventuras que eu sempre li, mas que nunca poderia viver. Cresci um pouco mais e abandonei os dados de vinte lados. A Idade Média da minha infância não existia mais e foi substituída pela farsa do Monty Python e pela Idade das Trevas que é ensinada nas escolas brasileiras. Nada de cavaleiros e castelos, apenas cruzados bárbaros destruindo tudo até Saladino I chegar e chutar a bunda branca deles até o outro lado do Mediterrâneo.

Ou o Terry Gilliam batendo cocos imitando o som de cascos de cavalos.

Eu consigo cantar isto até sob efeito de narcóticos e tenho o áudio pra provar.

A vida adulta veio, os castelos da minha memória eram ruínas que nada lembravam o Castelo de Warwick. Desde o filme Cruzada, de Ridley Scott, não se fazem mais grandes produções sobre a Idade Média, nem sobre o Rei Arthur. Nem a LEGO fabrica mais sets de cavaleiros e castelos. Meu escudo ficou de lado no sótão da casa junto com aquele filme tenebroso com o Clive Owen e a Kiera Knightley. E eu nem vou me dar ao trabalho de falar a respeito do filme do Guy Ritchie. A Idade Média era uma parte de uma versão antiga de mim que eu estava deixando de lado.

Até eu conhecer Derfel Cadarn.

Aqui caberia uma breve biografia sobre Bernard Cornwell, mas tenho preguiça e vocês tem Google e Wikipedia ao alcance dos dedos. O que importa é que ele escreve ficção histórica, misturando acontecimentos históricos e personagens reais com personagens fictícios. As Crônicas de Sharpe, por exemplo, são sobre um soldado inglês fictício nas Guerras Napoleônicas, sob o comando do Duque de Wellington. Eu já tinha visto alguns livros dele nas livrarias e não dei muita bola. Não costumo prestar muita atenção no que está em destaque na entrada da livraria.

Com meu primeiro Kindle em mãos e três meses de assinatura grátis de Kindle Unlimited, eu procurava alguma coisa que prestasse no meio de uma tonelada de romances de rodoviária com CEOs vingativos e livros de auto-ajuda corporativa com palavrões no título. Estava quase desistindo quando achei As Crônicas do Senhor da Guerra, a versão de Cornwell da mitologia arthuriana. Não sabia direito do que se tratava, mas tratei de baixar o primeiro livro, O Rei do Inverno, para ler no Metrô à caminho do trabalho.

“Se for uma bosta, pelo menos é de graça”, pensei.

Os livros começam como uma história dentro de uma história. Derfel Cadarn, um monge idoso, conta a história de Arthur como vista por ele, outrora um jovem guerreiro. Enquanto a história que reconhecemos se desenrola, o mundo continua andando e Derfel vê da janela do mosteiro onde ele se encontra os saxões cada vez mais próximos, assim como a minha história continuava passando pela janela do metrô enquanto eu lia a dele.

A mitologia arthuriana se mistura com a história dos povos britânicos e reinos e reis que existiram no passado coexistem com personagens que talvez nunca tenham pisado naquela ilha. A magia, tão importante na mitologia arthuriana, ganha cor. A magia é verdadeira ou é mentira? É charlatanismo ou a fé das pessoas realiza milagres? Não importa. O que importa para essa história e seus personagens é que eles a percebem como real.

Além de ter construído uma versão historicamente factível para os Cavaleiros da Távola Redonda, Cornwell ainda deu seu próprio toque, sem pervertê-la. Assim como T.H. White o fez muitos anos antes, a história contada não é a dos ciclos clássicos que todos conhecemos, e isso nos mantém atentos. Alguns personagens tem sua própria cor, outros já são irreconhecíveis ante suas versões originais. Não quero entregar detalhes e estragar a leitura, mas as mudanças feitas à personalidade de um certo Cavaleiro da Távola Redonda me agradaram bastante.

Em pouco menos de uma semana eu já havia devorado o primeiro livro e já estava baixando os outros dois. Poucos autores conseguiram me submergir dentro de seus universos particulares como Cornwell o faz. Sentia o mesmo na primeira vez que li A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, com onze anos, ou O Hobbit. Eu não estava assistindo os eventos se desenrolando, eu estava vivendo eles. Eu sorria e chorava junto com os personagens. Senti dor, senti raiva, senti alívio. Eu odiava os inimigos de Arthur e amava os seus amigos como se fossem meus próprios.

A narrativa é intensa, especialmente nas batalhas. Um queixa recorrente na literatura é que as cenas de batalha e combate nunca são tão vívidas quanto no cinema. Nos livros do Tolkien, por exemplo, batalhas importantes para a narrativa, como a Batalha de Helm’s Deep ou a Batalha dos Cinco Exércitos, parecem ser passadas por cima, apenas listando um ou outro embate específico e a lista de mortos e sobreviventes no final. Cornwell as descreve de maneira vívida. Você sente como se estivesse na própria parede de escudos, ou no convés de um navio na Batalha de Trafalgar. Boa parte disso pode ser atribuída a extensa pesquisa histórica que o autor faz para escrever. Ao final de cada livro, há uma nota do autor sobre a história, onde ele agradece os historiadores dos livros que ele consultou e faz referências ao que é verídico e o que é criação na história dele.

Quando finalmente chegou o último livro, Excalibur, eu estava arrasado. Cada página era como um passo em direção ao carrasco. Mas o destino, como Merlin repete frequentemente ao longo da trilogia, é inexorável. A leitura ficava cada vez melhor, mas eu sabia o que chegaria no final. Acumulava-se o sentimento de já saber como a história terminaria e de ter que me despedir deles. Despedir-me de Derfel foi como dar adeus a um amigo. Eu estava no trem, voltando de uma entrevista de trabalho em Santo Amaro. Desci em Pinheiros e, percebendo que faltavam poucos parágrafos para o final, encostei-me num canto e terminei o último capítulo antes de embarcar no metrô rumo à minha casa. Passei o resto da viagem em silêncio, olhando pela janela e pensando em qual seria minha próxima leitura.

A leitura seguinte, claro, foi mais um do Cornwell. Mergulhei na sua Trilogia do Graal, com o arqueiro Thomas de Hookton e o Arlequim, e logo na sequência nas Crônicas de Sharpe, seguindo o Capitão Richard Sharpe e o Sargento Patrick Harper em seu caminho desde a Índia, passando pela Guerra Peninsular até Waterloo. Passei por outros livros avulsos dele também, como o thriller de mistério O Condenado, a ficção histórica-especulativa Stonehenge, e a não-ficção Waterloo, sobre os quatro dias que levaram até a famosa batalha. Ainda não comecei as Crônicas Saxônicas, talvez seus livros mais famosos no Brasil que renderam a série Last Kingdom, mas ainda chegarei lá.

O mais curioso disso tudo, para mim, é que eu fui descobrir um novo autor favorito aos 35 anos. Quando achava que meus gostos estavam estabelecidos, descobri algo novo sobre mim. Ao mesmo tempo, redescobri algo sobre mim que eu havia enterrado e esquecido por muitos anos. Um Alexandre que ainda se emociona com histórias e que vive elas, junto com os personagens. Merlin nunca veio até mim e me transformou em um animal aleatório para me ensinar alguma coisa que me tornaria um rei melhor, mas essas histórias todas me ensinaram algo. Algo a respeito de mim, que talvez eu tenha demorado trinta anos para perceber. O destino, como Merlin — e Uhtred de Bebbanburg — nos lembra, é inexorável.

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Alexandre Aimbiré

Sociólogo de boteco, estudante de Letras, guitarrista ocasional, pai, marido e leitor ávido de caixas de sucrilhos. Leio e escrevo sobre o que me dá na telha.